Cartas

Carta 34

dezembro | 2020

1. Moeda, Tecnologia e Futuro

O que é moeda? Esta é uma pergunta simples cuja resposta, conforme veremos, está longe de ser trivial e cuja pouca compreensão dá origem a muitos debates no campo da Economia, Política e Sociedade. Ao se debruçar sobre o assunto, o grande economista britânico, John Hicks, disse em um artigo de 1935: “É com particular hesitação e até apreensão que alguém se atreve a abrir sua boca sobre o assunto moeda.1”

Nosso objetivo ao enfrentar esse desafio nesta carta, é primeiro distinguir os conceitos que nos ajudarão a entender os fenômenos que surgem no mundo contemporâneo relacionados ao dinheiro e quais seus impactos econômicos. Por exemplo, o dinheiro eletrônico, Bitcoins e Criptoativos, StableCoins, Central Banks Digital Currencies.

O conceito de moeda está na interseção entre tecnologia e sociedade. Está, portanto, intimamente ligado a tecnologia e as formas de organização da sociedade, além de suas instituições econômicas e políticas.
Nos cursos de Economia, a moeda é definida através de suas funções (i) unidade de conta; (ii) meio de pagamento; e (iii) reserva de valor.

A unidade de conta funciona como um referencial de medida na qual os preços são cotados, isto é, uma medida de valor para qualquer item. Para uma economia com N bens existem N*(N-1)/2 preços relativos, por exemplo: 1 caneta = 2 lápis. Imagine: como seria monitorar todos esses preços relativos e suas mudanças? Mais fácil seria pensar que o lápis custa 1 unidade monetária (u.m) e, portanto, a caneta custa 2 u.m., desta forma, temos apenas N preços. A função de meio de pagamento permite a eliminação da necessidade de uma “dupla coincidência de troca”. Quanto tempo e esforço levariam para que eu conseguisse encontrar alguém que desejasse ter a caneta que possuo dando em troca os lápis que necessito? A moeda como reserva de valor refere-se a capacidade de transportar o poder de compra – isto é, capacidade de ser trocada por outros bens, serviços ou ativos – ao longo do tempo.

Primeiramente, qualquer coisa pode potencialmente funcionar como moeda desde que desempenhe ainda que parcialmente, as funções supracitadas. Qual o nível de desempenho nas funções acima é o suficiente para carregar a definição de moeda? A resposta é bastante subjetiva. A expressão “quase-moeda” se encaixa bem aqui. Boa parte das controvérsias e debates acerca do tema acontecem porque a definição de moeda não é suficientemente clara. Diferentes autores enfatizam mais ou menos alguma destas três funções elencadas anteriormente.

Na influente obra “A Riqueza das Nações” escrita por Adam Smith, que muitos consideram como contemporânea ao surgimento da própria ciência econômica, há um capítulo chamado “Da Origem e Utilidade da Moeda” que enfatiza a função de meio de pagamento a partir da sua teoria da propensão às trocas e da divisão do trabalho: “...Os homens prudentes sempre organizaram os seus negócios por forma a terem consigo, além do produto específico do seu trabalho, uma mercadoria que lhes parecesse que poucos rejeitariam em troca do produto da respectiva atividade.” A teoria de J.M. Keynes da “preferência por liquidez” criticou a teoria clássica por só enxergar demanda por moeda a partir de motivos transacionais e introduziu outros motivos por essa demanda.2

Finalmente, a moeda não precisa ter necessariamente uma expressão física tangível para cumprir suas funções.

Um pouco sobre a história da moeda

Não é objetivo aqui escrever sobre todos os aspectos da história da moeda, no entanto, ressaltamos alguns fatos históricos que nos ajudam a elucidar melhor a sua natureza. Nesse sentido, já vamos usar alguma taxonomia que somente será abordada de forma mais precisa na próxima seção.

Muitas coisas desempenharam o papel de moeda ao longo da história da humanidade e em diferentes regiões, culturas e contextos históricos como, por exemplo, dentes de baleia, conchas (búzios), sal e tabaco. Mas eventualmente os metais como ouro, prata e cobre, pelas suas qualidades de escassez relativa, divisibilidade, fungibilidade, durabilidade e portabilidade foram dominantes. Alguns estudiosos sugerem que o surgimento da moeda metálica ocorre em Lídia (atual Turquia) por volta de 600 A.C. a partir de uma liga metálica formada por ouro e prata (Electrum) na qual uma peça oval era carimbada com uma imagem. A ideia era atingir uma certa uniformidade e padronização do meio de pagamento, isto é, a noção de cunhagem. Já conseguimos ver o papel do Estado a partir da necessidade de padronizar e certificar a quantidade e qualidade do metal utilizado. O império Romano apresentou moedas de ouro (aureus), prata (denarius) e bronze (sestertius) como o meio circulante. Ao longo do tempo, o ouro e a prata se tornaram os metais mais utilizados, de forma que o ouro, sendo mais caro era utilizado em moedas para transações de maior valor e a prata para transações de valores menores.

Já o papel-moeda, no Ocidente, tem sua origem ligada ao surgimento dos bancos privados. O explorador e mercador Marco Polo nos conta sobre existência de papel moeda no Oriente no século XIII em seu livro de viagens.3 Na Europa, o papel-moeda chega com o desenvolvimento do comércio e do surgimento de bancos privados. Ourives emitiam recibos relativos ao ouro depositado.

Instituições custodiantes emitiam recibos e certificados e negociavam letras de câmbio, um instrumento de crédito comercial. Esses instrumentos eram notas promissórias –
I owe you (IOU) destas instituições que, por conveniência acabavam circulando entre os agentes como se fossem as moedas de ouro ou prata e outras commodities que lhe dariam lastro. Obviamente os bancos não precisavam emitir essas notas com lastro total já que era muito improvável que seus depositantes sacassem todos os recursos ao mesmo tempo. Desta forma temos os bancos privados emitindo notas com lastro parcial que funcionavam como dinheiro privado.

Posteriormente, os governos proibiram a emissão dessas notas bancárias. Na Inglaterra, a Lei Bancária de 1844 tornou ilegal a produção de papel moeda que não fosse pelo governo.

A experiência nos EUA é descrita por Barry Eichengreen em um artigo publicado no National Bureau of Economic Resarch.4 Segundo o autor, após a independência, um amplo conjunto de moedas estrangeiras circulavam e até 1836, o papel moeda era emitido por bancos licenciados nos estados e por um banco federal nacional, o Banco dos EUA, que atuava como regulador do sistema. Até o período da Guerra Civil americana, os EUA viveram um “free banking era” de bancos privados que emitiam suas próprias notas desde que apresentassem um capital mínimo e mantivessem reservas em espécie ou ativos financeiros líquidos, como títulos do tesouro americano, que lastreassem sua total conversão a par. Desta forma, várias moedas privadas circulavam lado a lado com flutuação de preços entre elas. Somente em 1934, sentindo os efeitos da Grande Depressão, instaurou-se o Gold Reserve Act, que pôs fim nas notas bancárias remanescentes resultando no monopólio do governo para a emissão monetária lastrada em ouro com a paridade de US$ 35 por onça troy.

Essa paridade oficialmente durou até 1971 sob o sistema monetário internacional estabelecido no pós segunda guerra mundial na conferência de Bretton Woods, quando o presidente Richard Nixon suspendeu a conversibilidade da moeda americana em ouro. Com isso, o regime monetário passou a ser totalmente fiduciário, de curso legal e sem lastro em qualquer commodity. Segundo Milton Friedman, antes de 1971, toda moeda dos países desenvolvidos havia sido, e ainda que em momento longínquo, ligada direta ou indiretamente a alguma commodity. Algumas rupturas ocorreram antes, mas eram ocasionais e geralmente em momentos de crise.

Apesar da proibição da emissão de papel moeda privado, os bancos puderam continuar com a atividade creditícia e, portanto, na prática continuaram a emitir moeda na forma escritural, lastreada em reservas bancárias. Tem-se assim o estabelecimento do atual regime de reservas fracionárias e sistema de pagamentos baseado na moeda emitida pelo Estado.

Nos últimos anos, diversos trabalhos de historiadores como Nial Ferguson e antropólogos como David Graeber tem questionado a origem da moeda apenas como conveniência a partir das atividades de escambo, e ressaltado o papel da moeda no mercado de crédito como um instrumento de contabilização de passivos e ativos entre os agentes econômicos.

Para embasar essa linha de pensamento, esses autores ressaltam algumas experiências monetárias em diferentes momentos do tempo e de culturas.

Um primeiro exemplo citado por Nial Ferguson em a “Ascensão do Dinheiro” são as tabuletas de barro que eram usadas na Mesopotâmia no segundo milênio Antes de Cristo. Elas representavam a inscrição de promessas de pagamentos ao portador em commodities como trigo, lã e prata. Segundo o autor o sistema de empréstimo na antiga Babilônia era bastante sofisticado, sendo os débitos transferidos e, por isso, o pagamento era ao portador e não a um credor nomeado.

Outra importante experiência foi documentada pelo antropólogo e aventureiro, William Furness em 1910, em uma pequena ilha do Pacífico chamada Yap.5 Essa ilha tinha tido pouco contato com o resto do mundo e apresentava uma economia bem simples, mas Furness ficou impressionado com a sofisticação do sistema monetário. O dinheiro era representado por enormes blocos de pedra redondos com um furo no meio para que pudessem ser transportadas. Essas pedras tinham origem de fora da ilha e a dificuldade de as transportar fez com que a liquidação das transações não se desse com a transferência física dessas pedras e sim a partir do mero reconhecimento de sua posse, sendo que a localização dos blocos ficaria onde estivesse.
Outro exemplo comumente citado por essa linha de pesquisa são os tallies da Coroa Inglesa. Eram pedaços de madeira que representavam recibos de pagamentos, incluindo impostos, feitos a Coroa. Nesses pedaços de madeira eram talhados os valores e descrições e depois divididos em dois. Uma metade ficava com o devedor e a outra com o credor. As especificidades da madeira usada tornavam a falsificação bastante difícil. Na falta de metais preciosos, estes pedaços de madeira serviam como meio de pagamento em parte das transações na Inglaterra medieval.

Uma taxonomia da Moeda, Tecnologia e Sistemas de Pagamentos

A seção anterior procurou mostrar como o conceito de moeda é abstrato, fluido e tem relação íntima com tecnologia, crédito e Estado. Essa questão é resumida por Jon Cunliffe, Governor e membro do comitê de política monetária do Banco da Inglaterra, em um discurso sobre dinheiro na London School of Economics em fevereiro deste ano. Logo no início ele sustenta que as formas as quais o dinheiro toma na sociedade não são fixas. Elas mudam conforme se alteram as maneiras em que transacionamos e as tecnologias que tornam essas novas formas possíveis. Cunliffe argumenta que moeda pode ser descrita como uma convenção social. Segundo ele essa convenção tem sido expressada de diferentes formas ao longo de diferentes momentos e por diferentes sociedades.6

Vamos estabelecer alguma nomenclatura dessas “formas”.

A Moeda-Commodity/Moeda Mercadoria é aquela cujo valor é atrelado ou lastreado na quantidade de alguma commodity ou bem como as moedas de ouro e prata.

Já a Moeda Fiduciária não tem lastro em nenhum outro bem. Seu valor deriva totalmente da aceitabilidade e confiança de que seu poder de compra será mantido. A palavra fiduciária vem do latim fides que significa fé.

A Moeda Escritural é aquela criada pelos bancos comerciais entendidos como instituições que estão autorizadas a receber depósitos e concederem crédito. Quando um banco dá crédito ele cria moeda escritural creditando a conta do cliente tomador.

Moeda-token: A palavra token não é definida na língua portuguesa (por exemplo, o Google traduz como símbolo). Em inglês, o dicionário define como sendo algo tangível que serve como símbolo ou representação de um fato ou qualidade. Bons exemplos são as fichas ou os vouchers que podem ser trocados por bens ou serviços em determinados provedores. A moeda-token pode ser tanto física quanto digital.

A Moeda Digital pode ser entendida como uma forma mais ampla de representação eletrônica da moeda – bits, sequências de 0 e 1 num computador. Quando a tecnologia deixa de ser registro de créditos e débitos em livros (analógico) e passa a ser registrado na memória de um computador (digital).

No centro da tecnologia de transações está o sistema de pagamentos. Este é um sistema usado para liquidar transações através de transferências de recursos financeiros. Inclui instituições, instrumentos, agentes, regras, procedimentos, padrões e tecnologia que permitem essa transferência.

É claro que o sistema de pagamentos evolui junto com a moeda. Durante o período de moeda-commodity por exemplo, a posse física de moedinhas de ouro caracterizava sua propriedade. A transferência física era o sistema de pagamento. A partir do surgimento do dinheiro de papel atrelado a commodity e do sistema bancário gerou-se a necessidade de um sistema de liquidação entre os bancos (chamado de interbank settlement). Conveniência e redução dos custos de transação fazem com que os bancos passem a receber os passivos uns dos outros, ainda que exista aí um risco de crédito até que aconteça a liquidação de fato com a transferência física do ouro.
Hoje em dia o sistema de pagamentos é centralizado em torno dos bancos centrais dos países: os demais bancos possuem contas nessa instituição, e a liquidação financeira é feita através de transferência entre essas contas no mercado de reservas (um passivo do próprio banco central – equivalente a moeda-digital de emissão do próprio BC). O papel-moeda é simplesmente uma forma física desse passivo do BC, cuja quantidade em circulação vai depender do uso da população.

Uma explosão de inovações: Plataformas, stablecoins, criptomoedas e blockchain

A digitalização da informação foi um ponto de inflexão tecnológico muito importante para a humanidade.7 Dentro dessa revolução digital encontramos o smartphone como um dos principais produtos junto de todo seu ecossistema de aplicativos, seja para a prestação de serviços on-line ou do próprio comércio eletrônico. Como vimos na seção anterior, o dinheiro já existia em uma forma digital, mas o avanço da tecnologia e a criatividade tem permitido o aparecimento de novas formas de quase-moeda.

A seção do boletim trimestral do Banco da Inglaterra de 20148 é uma excelente referência, onde os autores classificam essas inovações em categorias de acordo com o arcabouço tecnológico do sistema utilizado para transações e qual o meio de pagamento utilizado.

Wrappers são os serviços que melhoram a interface e o acesso dos usuários à uma existente arquitetura do sistema de pagamentos tradicional. São os serviços como Apple Pay, Google Wallet que conectam os números dos telefones e cartões dos usuários as suas respectivas contas bancárias. No Brasil, acaba de entrar em operação o PIX, novo sistema de pagamento instantâneo desenvolvido pelo Banco Central que funciona desta maneira, ligando informações como CPF, telefone e e-mail às contas bancárias e permitindo transferências com segurança a qualquer hora do dia.

Mobile Money continuam ligados às moedas nacionais e representam dinheiro registrado como crédito em cartões inteligentes ou sistemas do próprio provedor do serviço, permitindo a transferência entre usuários.

Créditos e moedas locais que funcionam como unidade de conta e meio de pagamento em uma determinada plataforma, como jogos on-line e dinheiro usado apenas em determinadas localidades. De qualquer forma, estes mecanismos ainda usam o sistema de pagamentos tradicional. Seria o que aqui estamos chamando de tokens.

É importante ressaltar que na China, o pagamento digital já é bastante desenvolvido e dominado pelas gigantes das plataformas tecnológicas através da WeChat Pay (Tencent) e Alipay (Alibaba).

A quarta categoria seria o que os autores denominam moeda digital, mas para manter a consistência com a nomenclatura que estamos usando aqui vamos denominá-las de criptomoedas. Isto porque estas utilizam não só um novo meio de pagamento como também se utilizam de um novo mecanismo para executar e validar as transações entre os usuários.

A mais famosa das criptomoedas é o Bitcoin. Em seu artigo original, os criadores da Bitcoin sob o pseudônimo de Satoshi Nakamoto a definem como uma versão peer-to-peer de dinheiro eletrônico que permitiria realizar pagamentos on-line enviados diretamente de um usuário ao outro sem nenhum tipo de intermediação de instituições financeiras.

A tecnologia usada para a Bitcoin é o Blockchain. O Blockchain é um sistema de registro das transações que resolve o problema da dupla contagem, isto é, o fato de um mesmo token digital poder ser usado mais de uma vez pelo mesmo usuário. O registro das transações é distribuído para toda a rede e a confirmação dessas novas transações que vão entrar para o registro histórico é validado por participantes especiais da rede que recebem bitcoins como recompensa por esse processo (mineração). Segundo nossa taxonomia estabelecida na seção anterior, o Bitcoin e criptomoedas similares seriam classificadas como token-digital.

Já as chamadas stablecoins seriam moedas digitais que guardariam uma relação estável com outras moedas, sendo inclusive lastreadas por ativos seguros e denominados nas mesmas. Um exemplo é a Libra9 cuja ideia foi lançada pelo Facebook em 2019 e provocou forte reação de governos e seus órgãos reguladores ao redor do mundo.

Recentemente o Group of Thirty (G30) publicou um artigo10 que conclui que bancos centrais e ministérios governamentais devem desempenhar um papel de liderança ativa em estabelecer procedimentos e padrões, além de prover infraestrutura pública para pagamentos de forma a não deixar que apenas as forças de mercado atuem.

Nesse sentido, os principais bancos centrais vêm estudando os impactos dessas inovações no campo monetário e financeiro e muitos estão considerando o lançamento das chamadas Central Bank Digital Currencies (CBDC)11. O BIS (Bank for International Settlements) realizou uma pesquisa publicada no início do ano12, com 66 bancos centrais de países desenvolvidos e emergentes, concluindo que BCs em países que correspondem a 20% da população mundial declaram que provavelmente lançarão CBDCs nos próximos anos. O Banco Central do Brasil anunciou em agosto a criação de um grupo de trabalho para discutir impactos de uma eventual emissão de moeda digital no Brasil. Mas, novamente, o país parece estar mais avançado neste tema é a China, que já colocou em prática, em algumas cidades, seu projeto de DC/EP (Digital Currency /Eletronic Payment) em fase de testes.

Ainda não está totalmente claro como as CBDCs funcionariam na prática. Por definição, seriam outra forma de passivo monetário do banco central assim como as reservas bancárias e o papel-moeda. Mas quais os agentes teriam acesso completo a elas? Esse ponto é fundamental para analisarmos seus impactos. Em sua forma mais extrema (CBDC de propósito geral), todas as pessoas teriam contas eletrônicas diretamente no banco central e poderiam ter acesso direto ao balanço da autoridade monetária. Esse seria um importante passo no sentido de eliminar completamente o dinheiro de papel, tendência acelerada com a pandemia da Covid-19. De fato, em um discurso de setembro, a presidente do FED de Cleveland, Loretta Mester, chegou a citar essa questão relacionando com a inclusão financeira que tal mecanismo traria.13

Conjecturando sobre o futuro...

Quais os impactos econômicos desse conjunto de inovações? Em um artigo de 2019, “The Digitalization of Money”, Brunnnermeier, James e Landau argumentam que podemos assistir a uma separação das funções da moeda de maneira que diferentes moedas se especializariam e competiriam em uma determinada função. Por exemplo, determinado grupo de moedas podem competir como meio de pagamento enquanto outro grupo pode competir como reserva de valor. Outra conjectura é a de que plataformas emissoras dessas novas moedas digitais provavelmente irão diferenciá-las, conectando funções tradicionais com outras totalmente distintas como agregação de dados e serviços relacionados a redes sociais e comércio eletrônico. Os autores concluem ainda que a introdução de moedas digitais e sua relação com as plataformas levantam importantes questões sobre a competição entre moeda pública e privada. É possível que numa economia totalmente digital, ou seja, “cashless”, o sistema de pagamentos poderia girar em torno dessas plataformas sociais e econômicas ao invés da provisão de crédito via sistema bancário tradicional. O aumento da desintermediação financeira e a proliferação das fintechs sugerem que essas dinâmicas já estão em curso.

Conforme vimos, faz parte da evolução da moeda que inovações surjam no setor privado e que governos as regulem ou as internalizem em alguma medida. Essa competição em nichos deve acelerar nos próximos anos.

Finalmente, com relação a política monetária, desde a crise de 2008, os principais BCs nos países desenvolvidos vêm implementando políticas não-convencionais, isto é, usando instrumentos que não apenas a taxa básica de juros - uma vez que esta já atingiu o limite próximo de zero (Zero Lower Bound). Juros negativos14 e afrouxamento quantitativo com a provisão de liquidez em troca de ativos públicos (títulos do tesouro) e privados (Investment Grade Bonds, e até mesmo ETF de ações no caso do Banco do Japão) são “os mais usuais não-convencionais”. Mas atualmente, o controle da curva de juros também vem sendo considerado. Essas políticas ilustram de maneira inequívoca a área cinzenta entre política monetária e fiscal. Moedas digitais emitidas pelos bancos centrais têm grande potencial para agir nessa interseção.

Enfim, estamos passando por transformações profundas que parecem estar apenas no início com potencial de remodelar todo o arcabouço financeiro-monetário global. Nesta carta apenas “arranhamos a superfície” desse importante tema que antecipamos que continuará se desenvolvendo no futuro.

1-“A Suggestion for Simplifying the Theory of Money”, John R. Hicks (1935)
2- Leia mais sobre esse assunto em nossa Carta 17, “Moeda e Inflação no Atual Contexto Econômico”, disponível em nosso site.
3- No capítulo “How the Great Kaan Causeth the Bark of Trees, Made Into Something Like Paper, to Pass for Money All Over his Country”, Marco Polo descreve que um material feito de casca de amoreiras cortadas em pedaços de diferentes tamanhos com o selo do imperador eram usados para as transações comerciais como se fossem moedas de ouro e prata.
4-“From Commodity to Fiat and Now to Crypto: What Does History Tell Us?”, Janeiro 2019
5-Esse fato foi descrito no primeiro capítulo do livro de Milton Friedman, “Money Mischief”.
6-Mais informações: https://www.bankofengland.co.uk/speech/2020/jon-cunliffe-speech-followed-by-panellist-at-chinas-trade-and-financial-globalisation-conference.
7-Leia mais sobre esse assunto em nossa Carta 24, “A Revolução Digital e os Impactos na Economia”, disponível em nosso site.
8-https://www.bankofengland.co.uk/quarterly-bulletin/2014/q3/innovations-in-payment-technologies-and-the-emergence-of-digital-currencies
9-Mais informações: https://libra.org/pt-BR/white-paper/
10-“Digital Currencies and Stablecoins: Risks, Opportunities, and Challenges Ahead”, 2020
11-“Central Bank Digital Currency and the Future of Monetary Policy”, Michael D Bordo e Andrew T Levin (2017)
12-https://www.bis.org/publ/bppdf/bispap107.htm
13-https://www.clevelandfed.org/newsroom-and-events/speeches/sp-20200923-payments-and-the-pandemic.aspx
14-Leia mais sobre esse assunto em nossa Carta 32, “Juros Negativos: Reflexões”, disponível em nosso site.

2. Uma Revisão Dos Anos Trump e As Perspectivas Da Gestão Biden

As eleições americanas de 2020 trouxeram novamente questionamentos a respeito da precisão das pesquisas de opinião. Com uma vantagem de mais de 10 pontos percentuais nos levantamentos realizados na véspera do pleito, e com uma atribuição de probabilidade de vitória nos sites de apostas em torno de 65%, a eleição do presidente democrata Joe Biden se mostrou muito mais apertada do que o antecipado e, inclusive quando os resultados começaram a ser divulgados, tal probabilidade chegou temporariamente a se inverter1. Da mesma forma, o consenso vigente de que teríamos uma “blue wave”, com controle democrata do Congresso americano, só será esclarecido em uma eleição na Georgia que só será realizada em janeiro, com favoritismo, até o momento, dos republicanos.

Se por um lado o controle do Congresso é uma condição necessária para que um partido consiga tocar as agendas que dependem de aprovação legislativa, como a elevação de impostos, por outro lado muita coisa pode ser feita por decretos, tanto no campo da regulação, como no campo comercial/política externa. A ideia desta carta é apresentar um resumo das principais ações adotadas durante o mandato do presidente Donald Trump e avaliar quais as mudanças que poderiam ser implementadas no governo Joe Biden que se iniciará em 2021.

Gestão Trump – principais medidas com impacto econômico

A primeira grande medida do presidente Trump foi a proposta de cortes agressivos de impostos, que foi batizada de Tax Cuts and Jobs Act. A negociação consumiu o primeiro ano do mandato, sendo aprovada no final de 2017, e correspondeu à maior redução de impostos desde a gestão Reagan em 1981. A proposta reduziu tanto o imposto para as empresas, como para as famílias, inclusive elevando algumas deduções. As principais mudanças foram: (i) para as pessoas físicas, além do incremento de despesas que podem ser abatidas dos impostos devidos, a alíquota marginal mais alta foi reduzida de 39,6% para 37%2; e (ii) para as empresas, a alíquota estatutária caiu de 35% para 21%. O custo estimado para o pacote foi de US$ 1,5 trilhão ao longo de 10 anos, sem considerar o efeito sobre o crescimento, e, logo, geração de receitas.

Enquanto o primeiro ano do mandato foi concentrado nas negociações a respeito da proposta de corte de impostos, o ano de 2018 começou com o foco redirecionado para a política comercial. A estratégia escolhida foi concentrar as ações em elevações de tarifas sobre importações. Antes de entrar em detalhes do que foi feito, vale discorrer sobre a “Seção 201” do Ato de Comércio de 1974, que permite que o presidente eleve tarifas ou adote barreiras não tarifárias sobre importações que possam eventualmente estar ameaçando indústrias domésticas, devido, por exemplo, à competição injusta3. Uma empresa/setor que se sinta ameaçada pode solicitar a abertura de uma investigação na Comissão Internacional do Comércio, que, em seguida, apresentará um parecer para uma tomada de decisão final por parte do presidente.

Já no início do ano o presidente anunciou tarifas sobre a importação de painéis solares (50% para o que exceder uma cota pré-definida) e máquinas de lavar (20%), impactando em boa parte a China, mas também países como México, Coréia do Sul e Tailândia. Em março, vieram as tarifas sobre aço (25%) e alumínio (10%), sob justificativas de segurança nacional, embora parte dos países atingidos tenham sido posteriormente excluídos da lista.

Em abril a longa batalha concentrada na China se iniciou, agora fundamentada na Seção 301 do Ato de Comércio, que questiona as práticas chinesas relacionadas a transferência tecnológica forçada e respeito à propriedade intelectual. A lista inicial de US$ 50 bilhões de importações a serem tributadas a uma tarifa de 25%, concentrada em bens intermediários e de capital, tornou-se em um curto espaço de tempo em US$ 250 bilhões, com a reação do presidente Donald Trump à retaliação anunciada pela China. A tarifa inicial seria de 10%, e subiria para 25% em 2019. Este montante correspondia a cerca de 50% de toda a importação oriunda da China no ano anterior.

A estratégia de negociação agressiva do presidente Trump rendeu algumas idas e vindas ao longo dos anos, com a primeira trégua sendo anunciada em dezembro de 2018. O acordo parcial suspendeu a elevação programada para 25% da tarifa sobre os US$ 200 bilhões (que já estavam sendo tributados a 10%) por um prazo de 3 meses. A suspensão durou pouco e em maio as negociações fracassaram, e tivemos ainda mais uma rodada intensiva de negociação em agosto, quando Trump ameaçou tributar todas as importações chinesas. No final de 2019, entretanto, um novo acordo foi anunciado, batizado de Fase 1, que seria seguido por novas rodadas de negociações, que acabariam suprimidas pelo choque do novo coronavírus em 2020.

Outra fonte de atuação do governo Trump foi no processo de desregulamentação, um ponto que foi enfatizado ao longo de sua campanha. Com o controle do Congresso também na mão dos republicanos, essa agenda conseguiu progredir nos primeiros dois anos do mandato. Em particular, o número total de novas regulações anunciadas ao longo dos primeiros 24 meses do mandato foi significativamente menor do que o visto na mesma janela sob os dois presidentes anteriores, Barack Obama e George Bush. Olhando apenas mudanças mais substanciais de regulação, o montante foi menor do que o da gestão Bush, que, por sua vez, foi sensivelmente menor do que o visto no governo Obama.

Algumas mudanças regulatórias necessitam de aprovação no Congresso, o que foi possível na primeira metade do mandato Trump, quando tanto a Câmara quanto o Senado eram controlados pelos republicanos. Por exemplo, a Lei de Revisão do Congresso permite alterar regulações anteriores, e embora ela tenha sido criada em 1996, só havia sido utilizada uma única vez antes de 2017: foram 16 resoluções aprovadas na primeira metade do mandato Trump. Outro exemplo de ação conjunta com o Congresso foi a eliminação da multa para cidadãos que não houvessem contratado um seguro de saúde, conforme previsto na legislação do Affordable Care Act, também conhecido como Obamacare.

O setor financeiro também passou por mudanças regulatórias relevantes, com a aprovação do Economic Growth, Regulatory Relief, and Consumer Protection Act, que reverteu parte das regras introduzidas com a Volcker Rule, incorporada após a crise financeira de 2008. O efeito prático foi um afrouxamento nas restrições regulatórias para o setor bancário.

Por fim, o setor de energia também passou por mudanças regulatórias importantes. Bons exemplos são a reversão de limites impostos à emissão de metano no processo de extração de petróleo e gás e o abrandamento das regras de segurança impostas previamente sobre extração de petróleo offshore. Na mesma direção o governo anunciou, em 2017, a retirada dos EUA do Acordo de Paris.

Gestão Biden – propostas e perspectivas

O escopo de atuação do novo presidente dependerá do comando do Congresso. No momento em que esta carta está sendo escrita, ainda há uma indefinição no controle do Senado, que deve durar até janeiro de 2021. Dois pontos sensíveis para os mercados acionários dependem dessa definição: o aumento de impostos e o pacote agressivo de elevação de gastos.

Em relação ao aumento de impostos, a proposta democrata consiste em reverter parte do pacote aprovado em 2017, apresentando inicialmente um plano que prevê levantar US$ 1,5 trilhão em impostos nos próximos 10 anos (cerca de 1,5% do PIB do período). Tanto a tributação sobre as empresas (de 21% para 28%) quanto a sobre ganhos de capital seria elevada (passaria de 20% para 39,6% para indivíduos com renda acima de US$ 1 milhão ao ano): isto teria um impacto duplo sobre o retorno pós-impostos das ações. Haveria também elevação da alíquota máxima do imposto de renda para pessoas física, revertendo a redução aprovada no primeiro ano do governo Trump.

Em termos de gastos, por sua vez, um controle democrata do Senado abriria espaço para um programa mais agressivo de elevação de despesa, que seria diluído por alguns anos e concentrado em infraestrutura, saúde, energia limpa e educação.

Por outro lado, mesmo sem o controle das duas casas legislativas, o presidente tem margem de manobra relevante em algumas áreas de atuação. Neste sentido, um ponto bastante sensível para os mercados será a postura da gestão Biden em relação à política comercial, em particular no conflito aberto com a China. Embora exista um consenso de que a relação entre os dois países não retornará ao que era antes e que há uma convergência entre democratas e republicano na necessidade de uma postura mais dura com relação à China, a tendência é que a atuação seja menos unilateral, sem a implementação isolada de tarifas como técnica de negociação. Isto reduziria a incerteza presente durante a gestão Trump, na qual em vários episódios o mercado financeiro foi surpreendido por elevações abruptas de tarifas, o que se refletiu em um maior prêmio de risco embutido nos ativos de países emergentes.

Além disso, existem outras áreas de atuação via decreto presidencial com potencial impacto macroeconômico: limitação à recompra de ações por parte das empresas; maior rigor para a aprovação de fusões; políticas para redução de combustíveis fósseis; maior regulação bancária. Algumas destas medidas podem ter impactos microeconômicos/setoriais relevantes.

Conclusão

As eleições presidenciais trouxeram uma troca de partidos no comando da Casa Branca, com Donald Trump se tornando o sexto presidente a tentar a reeleição sem sucesso; em comum com os demais nomes, temos a ocorrência de uma recessão – embora aguda e muito breve – nos dois últimos anos do mandato4.

Embora ainda sem definição no controle do Senado, a mudança na presidência deve trazer alterações relevantes na política norte-americana, principalmente na parte regulatória e relações exteriores/comércio externo.

Fontes
Trump´s Trade War Timeline: An Up-to-Date Guide. Chad Brown & Melina Kolb, Peterson Institute for International Economics. 2020
Deregulation Under Trump. Keith Belton & John Graham. 2020
Financial deregulation under President Trump. Vembar K Ranganathan. 2018
Tax Increase Proposals Double Tariff Cuts. Strategas. 2020
Tax Reform is Pricing into Stocks But Not Yet Economic Growth Forecasts. Strategas. 2017

1-Probabilidade de vitória de Joe Biden segundo o site Predict It. Na noite da apuração, a probabilidade da reeleição de Donald Trumo chegou a disparar momentaneamente para mais de 70%.
2-Além disso, as faixas de renda também foram alteradas, de tal forma que a alíquota média foi ainda mais reduzida.
3- As medidas têm um prazo máximo de 4 anos.
4-Os demais presidentes não reeleitos são os republicanos George Bush (pai), Gerald Ford, Herbert Hoover, William Taft e o democrata Jimmy Carter. Fonte: Strategas

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