Cartas

Carta 32

outubro | 2019

1. Por quê estamos falando de Impacto?

Há 20 anos atrás, Kofi Annan, na qualidade de Secretário Geral da ONU, lançou o Pacto Global, iniciativa corporativa voluntária, baseada em um conjunto de diretrizes sobre direitos humanos, meio ambiente, trabalho e regras anticorrupção. O objetivo era incentivar empresas a adotar políticas de responsabilidade social e sustentabilidade.

Alguns anos depois, através do relatório “Who Cares Wins” ele entregou uma proposta que expôs os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), para encorajar a integração de critérios ambientais, sociais e de governança (Environmental, Social e Governance – ESG) no mercado de capitais. Esse foi o início do que chamamos hoje de ESG e investimento sustentável. Os 17 ODS (gráfico abaixo) apontam um grupo de desafios sociais, econômicos e ambientais a serem resolvidos até 2030. A estimativa é que serão necessários USD 3 trilhões por ano, apenas nos países desenvolvidos, para se atingir os objetivos propostos, como erradicação da pobreza, acesso a água limpa e saneamento para todos. Os recursos estão no mercado. Apenas não estão sendo direcionados para solucionar os problemas mundiais reconhecidos.

Muitos gestores de recursos identificaram aí uma oportunidade de investir em produtos e soluções que busquem atacar esses problemas, gerando impacto para a sociedade e garantindo, ao mesmo tempo, retorno financeiro para seus clientes. Com esse intuito, um mapeamento com a intenção de medir o impacto positivo gerado pelos investimentos passou a ser adotado em muitos setores do mercado.

A tecnologia veio para ajudar este movimento. Vivemos em um mundo hiper conectado e a velocidade 5G vai amplificar e acelerar ainda mais esse processo. Inteligência artificial e machine learning já estão sendo ativamente empregadas no desenvolvimento de novas soluções e as companhias estão tendo ciclos de vida cada vez menores.

Falamos sobre isso na nossa última carta, na qual abordamos o tema Silicon Valley [1] e o surgimento constante das inovações. As empresas não podem deixar de se reinventar, não apenas para ganharem espaço e se diferenciarem dos concorrentes, mas principalmente para se manterem relevantes em um mundo cada vez mais dinâmico. Somado a esse cenário, a sociedade entendeu que certos padrões não são mais aceitos e mudanças de comportamento estão sendo exigidas das empresas e cobradas pelos consumidores.

Reciclagem, preservação da biodiversidade e igualdade de remuneração salarial entre homens e mulheres, são apenas alguns exemplos de temas que vêm sendo usados para avaliar o desempenho das companhias e sua capacidade de se manterem relevantes ao longo dos anos. Alguns podem não gostar, mas a realidade é que os hábitos da sociedade estão mudando. Quem diria há 10 anos que carne vegetal seria uma tendência e que, em maio deste ano, uma companhia americana chamada Beyond Meat faria história abrindo seu capital com um valuation de USD 1,46 bilhões na bolsa de Nova York, um dos IPOs de maior sucesso dos últimos 20 anos da NASDAQ; ou que, na China, já existiriam estabelecimentos que aceitam pagamento via reconhecimento facial?

Todo acesso à informação que temos hoje nos ajuda na identificação dos problemas que o mundo está enfrentando. Quando escutamos um podcast, vemos uma matéria na televisão ou um post no Facebook, somos informados da escassez de alimentos da África, das questões sociais enfrentadas em fábricas asiáticas e das consequências do aquecimento global pelo mundo. É inevitável o desenvolvimento da consciência sobre estes problemas por parte da população mundial e da formação de uma frente que busque cumprir o que Kofi Annan nos propôs há 20 anos.

 

Millennials

Isso fica ainda mais claro quando falamos dos millenials, também conhecidos como geração Y, são aqueles nascidos entre 1981 e 1996. Jovens que cresceram, em sua maioria, conectados à internet e às redes sociais, em um cenário muito cético em relação à economia mundial e que, desde pequenos, estavam conscientes da magnitude e urgência das questões socioambientais existentes no planeta.

Essa é a geração que irá herdar USD 30 trilhões [2] nos próximos 20 anos e que hoje representa 35% da força de trabalho. Muitas vezes inseridos em empresas ainda presas a mentalidades ultrapassadas, os millennials valorizam o comprometimento com responsabilidade social e, conforme um estudo [3] de 2016 da Cone Communications, estão dispostos a até receber menos para trabalharem em um ambiente alinhado com essa ideologia.

Essa mesma pesquisa ainda mostra que 83% dos millennials serão mais leais às companhias que contribuírem para os aspectos socioambientais de uma comunidade e que 64% irão até mesmo recusar ofertas de trabalho em casos nos quais as empresas não possuam uma forte diretriz interna de responsabilidade social. São números relevantes que irão cada vez mais pressionar o mercado, conforme uma parcela maior desta geração atingir cargos estratégicos dentro das organizações.

Somado a seu papel de colaboradores, vemos esta parcela da população atuante também nos âmbitos de investidor e consumidor. Como investidores, querem entender para onde seu dinheiro está sendo direcionado e concordam que devem ser levados em consideração os aspectos socioambientais dos investimentos na hora da alocação dos ativos no seu portfólio. Como consumidores, estão dispostos a pagar mais por produtos que tenham um selo sustentável [4] .

A forte pressão desta geração exige um movimento das companhias, desde a cadeia produtiva até sua governança. Elas precisam mostrar que seguem os princípios de ESG para atraírem consumidores, investidores e reterem talentos.

 

Critérios ESG

Os critérios ESG englobam quesitos ambientais, sociais e de governança das empresas, ou seja, mostram como elas lidam com suas emissões de carbono, diversidade no ambiente de trabalho e alinhamento com acionistas. No final do dia, eles refletem o padrão de operação das companhias e fornecem transparência aos investidores sobre a forma como os negócios estão sendo conduzidos.

O critério “Environmental” (Ambiental) pode incluir aspectos como uso de energia, produção de lixo, poluição ou iniciativas de conservação dos recursos naturais, ou seja, o impacto ambiental que a companhia gera. O critério “Social” (Social), por sua vez, pode medir o relacionamento com a comunidade, o engajamento e rotatividade da equipe e as condições de saúde e segurança no ambiente de trabalho. Já o critério “Governance” (Governança) pode englobar o sistema de políticas e práticas das empresas, a transparência das informações ou o grau de participação dos colaboradores nos processos de decisão.

Hoje, mais do que nunca, o debate sobre a validade destes critérios e a correlação direta dos mesmos a retornos de longo prazo está intensificado. Ainda vemos no Brasil poucos gestores que implementam uma análise de sustentabilidade no seu processo de investimento e, aqueles que levam em consideração ESG, utilizam as métricas estritamente como uma forma de mitigar o risco intrínseco do investimento.

Uma pesquisa do MSCI [5] que comparou as cinco empresas com melhor e pior score ESG, concluiu que aquelas com uma pior nota nestes critérios, apresentaram três vezes mais quedas no preço das suas ações do que aquelas com as melhores notas.

No Brasil, um exemplo que traduz bem o que falamos sobre o uso do ESG para mitigar risco foi o que vimos no início do ano com a Vale. Gestores que se utilizam dessas métricas justificam que a queda dos preços da companhia, em decorrência do evento de Brumadinho, poderia ter sido antecipada com a incorporação destes critérios no processo de alocação. Um baixo score no quesito “Ambiental” refletiria o alto risco em investir nesta empresa, o que poderia evitar boa parte da perda financeira ocorrida.

 

Desafios na implementação e leitura do ESG

O maior desafio é implementar de forma eficaz estas métricas no processo de investimento, dado que o conceito de ESG está em constante evolução e desenvolvimento. Ainda não existe um critério universal adotado pelo mercado, de forma que a falta de parametrização dificulta ainda mais a análise dos gestores dos dados divulgados.

O problema está no fato de que hoje cada fundo ou empresa adota suas próprias definições para medir os fatores, ou seja, um pode considerar no critério “Ambiental” emissões de carbono e outro não. Da mesma forma, cada um atribui pesos diferentes aos critérios. Enquanto um pode dar mais importância às características sociais de uma empresa, outro pode enxergar mais relevância na sua governança. Tudo isso contribui para as discrepâncias nos resultados obtidos. Para tornar o processo de decisão mais coeso, pode ser interessante para os investidores dissecar as metodologias já existentes e atribuir aos critérios os pesos que julgarem corretos, levando sempre em consideração as particularidades inerentes aos diferentes setores.

Uma primeira iniciativa de estabelecimento de um framework universal, foi a criação do SASB (“Sustainability Accounting Standards Board”) em novembro 2018, que desenvolveu metodologias para avaliar companhias de 77 setores diferentes do mercado. A intenção é identificar e comunicar aos investidores e acionistas de forma clara como a empresa está posicionada em comparação ao padrão socioambiental do setor em que ela se encontra, fundamentando a tomada de decisão sobre um investimento.

É importante ressaltar que Investimentos de Impacto e ESG são conceitos diferentes. ESG corresponde, em termos básicos, a uma nota que refletirá o modo de operação de uma empresa nos quesitos “ambientais”, “sociais” e “governança”. Os critérios ESG podem ser utilizados para avaliar qualquer empresa, independente do produto ou serviço que ela forneça.

Já Investimento de Impacto, seguindo a definição do IFC (“International Finance Corporation”), é aquele que tem a intenção de gerar um retorno positivo e mensurável para a sociedade e para o meio ambiente, em conjunto com um retorno financeiro para o investidor.

 

Mas afinal, o que é Impacto?

Dependendo de com quem você fale, terá respostas diferentes sobre o que de fato gera impacto. Alguns veem impacto muito claramente em investimentos ligados à educação, outros à saúde. Para nós, “impact is in the eye of the beholder”, ou seja, impacto está nos olhos de quem o enxerga.

Conforme mencionamos no início da carta, o mercado mensura impacto através dos 17 ODS. Embora todos tenham sido criados com o mesmo grau de importância, para fins de investimento, alguns são muito mais palatáveis do que outros. Uma pesquisa [6] recente mostrou que para os gestores, dentre os 17 objetivos, a maior parte dos investimentos disponíveis classificados como impacto, se enquadram apenas em cinco: (i) energia acessível e limpa, (ii) combate às alterações climáticas, (iii) boa saúde e bem-estar, (iv) indústria, inovação e infraestrutura e (iv) água limpa e saneamento.

Já estamos vendo este cenário mudar aos poucos. A evolução da tecnologia cria novas oportunidades de geração de impacto em outras áreas, como o que temos visto em educação (alinhamento com ODS 4) e mobilidade (alinhamento com ODS 11). Além disso, acreditamos que a exigência dos consumidores e sociedade como um todo para que as companhias se alinhem aos princípios de ESG, irão impulsionar o crescimento ainda maior do mercado de impacto nos próximos anos em todas as vertentes presentes nos ODS.

 

Mercado de Impacto

A GIIN (“Global Impact Investment Network”), rede mundial de investidores de impacto, divulgou em seu relatório [7] de abril 2019 (“Sizing the Impact Investing Market”) que o mercado de impacto movimenta USD 502 bilhões em ativos geridos por 1.340 organizações no mundo todo.

50% destes investimentos ocorreram apenas nos últimos 10 anos e foi mensurado um crescimento de 34% apenas nos últimos 2 anos, ainda que muito concentrados nos países desenvolvidos. Apenas Estados Unidos e Canadá são responsáveis por 58% dos investimentos de impacto realizados e Europa, por 21%. Isso mostra que ainda há um espaço muito grande para crescimento, especialmente nos mercados emergentes, como é o caso do Brasil.

 

Endowments e Fundações

O desenvolvimento do cenário exterior foi muito impulsionado pelo investidor institucional, como endowments, fundações e fundos de pensão, que possuem, na sua cultura de investimento, um alinhamento entre retorno financeiro com práticas de sustentabilidade. Através de subvenções, como empréstimos com juros baixos ou investimentos diretos em empresas, os endowments, também conhecidos como fundos patrimoniais, são capazes de potencializar sua geração de impacto.

Um exemplo é a Ford Foundation [8], criada em 1936 através de uma doação de USD 25 mil de Henry Ford, cujo objetivo era reduzir a pobreza e desigualdade, um propósito diretamente alinhado com os ODS. A Ford Foundation hoje administra um endownment de USD 13,7 bilhões.

Em sua essência, os fundos patrimoniais têm um objetivo claro de preservar o capital principal e, a partir do retorno real gerado com um portfolio que conta inclusive com Investimentos de Impacto, direcionar os recursos para projetos alinhados com o seu propósito. Assim, é imprescindível que, independente dos investimentos feitos, o fundo tenha rentabilidade no longo prazo.

A relevância do investidor institucional é enorme no mercado de investimento sustentável, devido não só aos seus fundamentos, mas também ao seu tamanho. O fundo de pensão CalPers, dos professores da Califórnia, tem um patrimônio de USD 300,3 bilhões e regras claras para gerir seu portfólio. Seu processo engloba desde a integração de fatores ESG no processo de análise dos ativos, até a condução de pesquisas aprofundadas sobre novos tópicos ligados à sustentabilidade e com potencial de gerar o maior retorno para o fundo.

 

Cenário Brasil

Em contrapartida ao que vemos lá fora, no Brasil o conceito de Investimentos de Impacto ainda é muito novo, embora, por toda sua conjuntura de desigualdade social, o país apresente um enorme potencial para este tipo de investimento. Entretanto, acreditamos que as mudanças no ambiente macroeconômico, tanto as aliadas ao desenvolvimento e disseminação da tecnologia que temos falado, quanto aos estímulos governamentais ao empreendedorismo, irão impulsionar cada vez mais o desenvolvimento deste promissor mercado no país.

A lei sancionada [9] no início do ano que regulamenta a criação dos endowments no Brasil deverá estimular o surgimento destes fundos por aqui, o que contribui para o desenvolvimento de um ambiente que favoreça investimentos em educação, tecnologia, saúde e diretos humanos e, impulsionando o mercado interno de impacto.

 

Uma nova oportunidade

O capitalismo, que foi um grande aliado dos avanços sociais e tecnológicos nas últimas décadas, também foi o catalizador do aquecimento global e de outras mazelas da sociedade contemporânea. Embora nenhum outro sistema tenha sido capaz de gerar a mesma quantidade de inovações e crescimento econômico que o capitalismo proporcionou, a missão inicial dada às companhias de apenas, e tão somente, dar retorno aos acionistas está sendo revista.

O Business Roundtable, associação que reúne as maiores companhias norte-americanas, decretou em um manifesto, assinado em agosto deste ano por 181 CEOs, que lucro não deveria ser o maior propósito das empresas. O documento passa a mensagem que as corporações devem buscar gerar valor a longo prazo, o que inclui gerar impacto positivo para as comunidades e para o meio-ambiente, a fim de se manterem relevantes no mercado.

Este movimento está muito pautado nas novas evidências que correlacionam um maior score ESG com um maior valuation das empresas. Em estudo [10] divulgado em julho, o MSCI conclui que um forte perfil ESG torna as companhias mais competitivas do que seus concorrentes, pois elas apresentam maior eficiência no uso de seus recursos, capital humano mais desenvolvido e melhores políticas de inovação. No final, isso se reflete em retornos expressivos para os investidores.

Assim como o corpo de gestão das principais companhias do planeta está se posicionando nesse sentido, os seus acionistas estão passando a exigir não somente o lucro financeiro, mas impacto positivo socioambiental, seja pela recompensa moral, seja pela recompensa financeira do prêmio de valuation previamente discutido. O capital de famílias navega nesse mesmo sentido, exigindo cada vez mais que suas companhias investidas adotem os mesmos valores e práticas, assim como exigindo o mesmo de novos empreendimentos e investimentos. E esse movimento é particularmente importante na América Latina, onde 75% das empresas de mais de USD 1bi são family-owned and controlled [11].

 

Papel do Family Office

Um Family Office tem a oportunidade de ser proativo e gerador de valor nessa jornada, seja pela conscientização e aculturamento das famílias e da indústria de investimentos ao seu redor, seja pela busca ativa e direcionamento do capital para investimentos de ESG e impacto.

É uma oportunidade rica também para engajar e aproximar as múltiplas gerações das famílias que desejam perpetuar não só o seu patrimônio, mas também o seu legado. O Investimento de Impacto é um canal perfeito para unir famílias em volta de valores e legado positivo, pois o tema de como criar um mundo melhor é um debate que interessa e permite a participação de todas as idades, desde avós a netos. Permitindo assim, a participação das novas gerações na liderança dos investimentos da família.

Nos enxergamos como participantes ativos do movimento necessário para influenciar na maturação e sucesso do setor. O caminho é longo e cheio de desafios, mas vemos no longo prazo a real possibilidade de criar um ambiente multidimensional de preservação de capital, que leva em consideração retorno financeiro, impacto social e perpetuação de legado.

 

Referências

[1] https://turimbr.azurewebsites.net/publicacoes/carta-turim/

[2] https://www.ey.com/Publication/vwLUAssets/ey-sustainable-investing-the-millennial-investor-gl/$FILE/ey-sustainable-investing-the-millennial-investor.pdf

[3] 2016 Cone Communications Millennial Employee Engagement Study

[4] How and Why Sustainability is Gaining Momentum with Customers.” (Nielsen, 2015)

[5] https://www.msci.com/www/blog-posts/has-esg-affected-stock/0794561659

[6] https://gsh.cib.natixis.com/api_website_feature/files/download/5620/SDG-Report-Natixis-GSH-ExecutiveSummary.pdf

[7] Sizing the Impact Investing Market, April 2019 (Abhilash Mudaliar and Hannah Dithrich)

[8] https://en.wikipedia.org/wiki/List_of_wealthiest_charitable_foundations

[9] MP 851/18 na lei 13.800 de 4 de janeiro de 2019

[10] Foundations of ESG Investing: How ESG Affects Equity Valuation, Risk, and Performance (Guido Giese, Linda-Eling Lee, Dimitris Melas, Zoltán Nagy, and Laura Nishikawa)

[11] Business in the blood, Nov 1, 2014, The Economist

2. Juros Negativos: Reflexões

Estamos assistindo a um fenômeno sem precedentes nos mercados financeiros: a proliferação de títulos de renda-fixa cujo rendimento implícito para o comprador é negativo. Estima-se que, em agosto de 2019, o estoque de papéis com rendimento negativo tenha ultrapassado o valor de 16 trilhões de dólares ou, pouco menos de 30% de todo o estoque dos títulos de renda-fixa existentes.

Em meados de agosto, pôde-se comprar um título do governo suíço denominado em francos, com vencimento em 2029, que não paga cupons (“zero-coupon bond”), com o preço aproximado de 110% do valor de face. Ou seja, em 2029 alguém que compra esse título hoje receberá 100% do valor de face, tendo “perdido” pouco mais de 10%, o que equivale a um rendimento negativo de pouco mais de 1% por ano!

Mas qual a diferença entre esse título e o papel moeda Franco Suíço? O papel-moeda nada mais é que um título de dívida emitido pelo Banco Central – ou seja, pelo governo – que não paga juros algum.

Se um poupador, ao invés de comprar esse título, guardar os francos equivalentes embaixo do colchão por 10 anos seu retorno nominal terá sido zero, logo, melhor do que negativo! Pensando de forma prática, guardar grandes somas de dinheiro em casa é inexecutável visto que existem custos financeiros associados ao armazenamento e segurança, além de toda a inconveniência associada. No entanto, na teoria, deve existir um juro nominal negativo que seja baixo o suficiente e cujo custo associado ao armazenamento seja menor do que a perda financeira do “investimento”. Deve existir um limite de quanto a taxa de juros pode ser negativa, já que a população sempre pode optar por entesourar e armazenar o papel moeda.

Qual o nível negativo dos juros para que as pessoas prefiram entesourar seu dinheiro na forma de papel moeda, em cofres dentro das suas casas, correndo risco de roubo ou dilapidação, ou mesmo nos cofres das instituições depositárias pagando por custódia e seguro? Recentemente, têm se observado o aumento das vendas de cofres em países como Japão e Suíça. [1]

O ouro, por exemplo, pode ser pensado como uma moeda com carrego negativo, já que existem custos de armazenamento, seguro e proteção.

Outra anomalia é a existência de algo em torno de US$ 900 bilhões de títulos corporativos [2], emitidos por entidades não governamentais, negociando com rendimento nominal negativo. Como chegamos a este ponto?

Vamos começar entendendo o que é fundamentalmente uma taxa de juros. O juro é um conceito que assume diferentes formas dependendo do enfoque que se quer dar. Existe uma infinidade de taxas de juros nos mercados. Temos, por exemplo, juros de curto-prazo, que variam de um dia até poucos meses, e juros de prazos mais longos que vigoram por mais de 30 anos.

Aqui vamos nos aprofundar na ideia de juros como o preço para se abrir mão do consumo presente  em  nome de  um consumo futuro, isto é, o preço relativo do presente comparado ao futuro. Quanto maior a taxa de juros, maior o preço do presente vis-à-vis o futuro.

Uma distinção importante é aquela entre juros reais e nominais. Na  teoria,  os  agentes  econômicos  respondem a preços  relativos,  isto  é,  quantidades  comparadas  de um bem em relação a outro. Uma quantidade monetária (“moeda”) é convertida em quantidade de bens e serviços pelo nível de preços (“poder de compra”), uma medida monetária que representa o valor de  uma cesta de  bens e serviços.

A inflação é, portanto, a variação deste nível de preços. Os juros nominais são a variação de uma quantidade monetária. Os juros reais representam, dessa forma, juros nominais descontados da inflação. Logo, se a inflação for superior ao juro nominal, temos uma taxa de juros real negativa; se for menor, uma taxa de juros real positiva.

Olhando sob a ótica dos juros reais, juros negativos parecem consideravelmente menos estranhos. Na verdade, taxas de juros reais negativas são um fenômeno relativamente corriqueiro, sobretudo em momentos de inflação mais alta.

Na teoria econômica, a taxa de juros real é o preço relativo que equilibra a oferta de poupança agregada (fonte de recursos) com a demanda por investimentos (uso de recursos).

São várias as justificativas econômicas para juros estruturalmente mais baixos do que no passado. Essas justificativas estão associadas, em sua maioria, ao aumento do “pool” de poupança agregada vis-à-vis a demanda por investimentos. Existem fatores conjunturais e estruturais que se misturam.

Em termos conjunturais, Ben Bernanke, já em  2005, alertou em discurso no FED (Banco Central  americano) para o “Global Savings Glut” [3], em que o aumento da renda em países emergentes a partir dos anos 2000 gerou uma maior poupança agregada neste conjunto de países e a natureza mais  global  dos  mercados  financeiros,  através da maior mobilidade internacional do capital financeiro, contribuiu para o aumento da poupança global.

O aumento da poupança precaucional e a desalavancagem das famílias no pós crise de 2008 estão entre as principais ideias contidas no conceito de “Estagnação Secular” [4] – conceito resgatado recentemente pelo economista e ex-secretário do Tesouro dos Estados Unidos, Lawrence Summers. A Estagnação Secular acontece quando a oferta de poupança é cronicamente mais alta do que a demanda por investimentos, empurrando taxa real de juros para baixo. O aumento da desigualdade de renda também é um fator que vem ganhando destaque nas explicações para o aumento da poupança agregada, visto que a população mais rica tende a poupar mais de sua renda corrente. Argumentos estruturais, por outro lado, enfatizam a questão demográfica.

Estudos [5] mais recentes sugerem que o envelhecimento populacional está associado à taxas de juros mais baixas, mas não existe consenso na literatura sobre os  canais pelos quais isso acontece. Uma das linhas de pensamento sugere que o aumento da expectativa de vida tem  feito com que as pessoas passem mais tempo no mercado de trabalho, se mantendo na fase poupadora do ciclo de vida por um período mais longo.

 

Mas qual é a ligação dos juros negativos com a Política Monetária?

A escassez de títulos de alta qualidade (aqueles avaliados com baixo risco de crédito pelas agências de rating) tende a estimular os preços destes ativos para cima. Os Bancos Centrais contribuem para isso através  dos  programas  de afrouxamento quantitativo (“Quantitative Easing”), em que compram bonds (títulos de dívidas emitidos  por companhias ou por governos no exterior) de alta qualidade, trocando por reservas bancárias.

No contexto atual da moderna política monetária, os juros de curto-prazo são o  principal  instrumento  que  as autoridades dispõem para influenciar a demanda agregada da economia, através dos chamados canais de transmissão, que são as maneiras pelas quais a taxa de juros referencial afeta a demanda agregada da economia. Mas o que acontece quando essa taxa chega a zero?

Entramos, então, no campo da chamada Política Monetária Não-Convencional. Fazem parte deste arcabouço: o “forward guidance” [6] (no contexto atual - para juros baixos por um período prolongado), o afrouxamento quantitativo já citado como tentativa de controlar a curva de juros, além de metas específicas para taxas de diferentes maturidades e, finalmente, os juros de curto-prazo negativos (taxas de depósito negativas nas contas que os bancos comerciais mantém no  Banco  Central).  Neste  caso,  cruzar  o  zero e assumir taxas negativas é equivalente a penalizar o excesso de reservas, na tentativa de criar um estímulo adicional ao crédito conforme os bancos busquem melhor remuneração.

Esta Política Monetária Não-Convencional começou a ser utilizada amplamente após a grande crise finaceira global de 2008. E tem se provado de difícil saída.

Quanto ao juro negativo de curto-prazo, a Dinamarca foi o primeiro país a adotar em sua política monetária em 2012.

Em meio à desaceleração econômica global em curso, a taxa de juros nominal negativa ficou ainda mais difundida entre os bancos centrais, sobretudo na Europa. O BCE cobra 0,50% para que os bancos mantenham reservas em sua conta. Já o Banco Central da Suíça cobra 0,75%.

 

Quais as consequências e efeitos colaterais dos juros negativos, e o que podemos esperar para o futuro da política econômica?

A taxa de juros “livre de risco” é a principal referência para a precificação dos ativos nos mercados financeiros. Quando essa taxa é muito baixa, os agentes econômicos são incentivados a tomar mais risco para capturar o maior “prêmio” entre a taxa básica e os ativos arriscados (de retornos esperados maiores). Com isso, aumenta-se a exposição a títulos de renda fixa de vencimentos mais longos, além do risco de crédito. Isto pode gerar bolhas em algumas partes do mercado. No momento em que escrevemos esta carta, o rendimento até o vencimento de um título da Petrobras em euros “rende” juro negativo, sendo que esta dívida é classificada pela Standard & Poor’s como BB-, o que classifica um título de crédito mais arriscado, de grau especulativo (denominado “High Yield”).

Outro efeito é o que incide  diretamente  sobre  o sistema bancário. Este atua  como  um  transformador  de vencimentos, captando recursos no curto prazo e emprestando por períodos mais longos, – nesse contexto, tão importante quanto o nível dos juros é a  inclinação da curva, isto é, a diferença entre os juros de curto e longo prazo. Em um cenário onde a concorrência entre os bancos está em aceleração, é difícil para os bancos cobrarem juros negativos na captação de depósitos e a tendência é a desinclinação (“flattening”) da curva de juros, que também prejudica os lucros.

Portanto, vem ganhando força entre formadores de opinião sobre política econômica, a ideia que chegamos no ponto em que juros  extremamente  baixos  se  tornam contraproducentes. Um exemplo seria uma retroalimentação deste mecanismo: quanto menor a taxa de juros menor o rendimento da poupança que combinada com o aumento da expectativa de vida citada anteriormente, tem gerado um aumento adicional da taxa de poupança.

Com o suposto esgotamento dos efeitos da política monetária, existiria um papel mais proeminente a ser desempenhado pela política fiscal, com aumento dos gastos dos governos e queda de impostos. O problema nisto é que a linha que separa política monetária e fiscal vai se desfazendo, com riscos da perda  de  autonomia dos Bancos Centrais. Não sabemos ao certo todas as consequências futuras desse processo, mas podemos afirmar que erros de política econômica e surtos inflacionários são riscos consideráveis nesse ambiente.

 

Referências:

[1] “Japanese Seeking a Place to Stash Cash Start Snapping Up Safes” – Wall Street Journal, 22 de fevereiro de 2016

[2 Deutsche Bank Research, setembro de 2019

[3] https://www.federalreserve.gov/boarddocs/speeches/2005/200503102/

[4] http://larrysummers.com/2016/02/17/the-age-of-secular-stagnation/

[5] https://www.ecb.europa.eu/pub/pdf/scpops/ecb.op217.en.pdf

[6] Forward Guidance: Indicação pelo banco central sobre a trajetória esperada para a política monetária, mantendo as expectativas do mercado sobre a política monetária (e, essencialmente, sobre a inflação) ancoradas

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